domingo, 3 de julho de 2011

OS INVISÍVEIS

Foto: Baixa dos Sapateiros (Carlos Cintra)

Sexta-feira, dia 28 de maio de 2010. 20h30 da noite. Chegamos na Praça da Piedade. Logo observamos a grávida Rita em cima do seu papelão e isolada em sua "ilhota". Rita não sabe quanto tempo tem de gestação, não sabe o que é pré-natal, bolsa-familia, Fome Zero...

Assim que os carros pararam e o panelão de mingau de tapioca foi colocado em um dos bancos da praça, em frente ao Gabinete Português, apareceu um senhor de barbas longas perguntando - e se desculpando - se nós iríamos distribuir comida. Nós respondemos que naquela noite tinha mingau, pão e água. Mesmo antes de acabar o seu  primeiro copo de mingau o senhor pediu mais um pouco, talvez com receio de acabar. Antes de sairmos repetiu três ou quatro vezes. Também não cansava de repetir os agradecimentos e bençãos.

Foi também na Piedade que conheci um jovem que acabou de completar dezoito anos e me perguntou se eu tinha levado roupas - camisa, calça, bermuda - porque ele só tinha aquela que usava no corpo.  Pediu também escovas de dente e de cabelo. Disse que tinha, mas foi roubado, é assim que acontece com quem mora na rua. "você dorme e um inimigo vem e joga uma pedra na sua cabeça ". Foi lá também que pediram muito cobertor, manta ou mesmo um lençol. As madrugadas em Salvador tem sido frias...

Saindo da Piedade, chegamos ao Relógio de São Pedro. Lá encontramos mais pessoas em busca de ajuda e já esperando o sopão (uma marmita) apesar de percerbemos que o local estava demasiadamente sujo com objetos plásticos sinal de que outras pessoas já haviam passado. Mesmo assim, fizeram fila para receber o mingau e o pão, muitos pediam vasilhas para guardar para o café da manhã de amanhã. 

Conheci um senhor chamado "Natal" que me mostrou o seu colchão (caixas de papelão) e me disse que aqueles pães que ele pediu eram para o fim de semana. Revelou ainda que muitos daqueles não guardam vasilhas plásticas e terminam por não ter nenhuma alimentação. Fez bem ele em encher o seu copo de mingau e ainda pediu uma vasilha cheia de água.

Bem perto dali, dois grupos jogavam dominó animadamente enquanto um outro senhor gemia de dor deitado ao ponto de não querer comer nada, apenas consentiu que deixássemos um copo de mingau para o dia seguinte. Enquanto entravámos no carro, uma moça aparentando quarenta anos - que já tinha brigado com duas ou três pessoas apenas enquanto estávamos lá - começou a provocar um rapaz que chegou enquanto nos arrumávamos para sair e repetia que "ele estava nos atrapalhando porque nós deveríamos estar cansados e queríamos ir para casa"...

Próxima parada, a frente do Restaurante Popular no Comércio. Pelo menos cerca de  vinte pessoas se animaram quando viram os carros pararem. Infelizmente não tínhamos mais cobertor (os dez foram distribuídos na Piedade), porém ainda tinha muito mingau, o pão acabou pouco depois de chegarmos. Percebi um homem que parecia está alcoolizado ou completamente "chapado", só sei que não desviava o olhar fixo no horizonte. (Qual horizonte?)

A última parada da noite seria no Chame-Chame para encontrar os usuários de drogas que ficam no início da Av. Sabino Silva. Não havia ninguém lá, apenas um grande aparato policial por toda a região, inclusive o batalhão de choque com cachorros, homens e viaturas...Provavelmente alguma operação no Calabar. Já passa das 22h40, hora de voltar para a casa. No caminho uma fina chuva ensaia começar...

Às vezes, senti como se estivesse no filme/série Ó Paí Ó -que retrata a  luta pela vida dos baianos do centro histórico da cidade - ou às vezes dentro de um livro de Jorge Amado, por que não Capitães da Areia? Infelizmente essas pessoas não são personagens de uma obra de ficção, são seres humanos com rosto e história que passam desperbido por nossos olhos, corações e mentes, são invisíveis para a sociedade e também para os governos municipal, estadual e federal. 

"A barriga está vazia/ Mas a boca ri todo dia/ Malabares na esquina/ Desequilíbrio é a sina/ Mas ele podia ser eu/ Eu podia ser você/ Você podia ser um outro/ Roleta russa de loucos/ Se escapamos foi sempre por pouco". Zélia Duncan recita na abertura da música Chicken de Frango (Zélia Duncan/Rodrigo Maranhão) no disco Sortimento.

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